Hermes
deus grego da fertilidade, dos rebanhos, da magia, da divinação, das estradas e viagens, entre outros atributos / De Wikipedia, a enciclopédia encyclopedia
Hermes (em grego: Ἑρμής, transl.: Hermés) era, na mitologia grega, um dos deuses olímpicos, filho de Zeus e de Maia, e possuidor de vários atributos. Divindade muito antiga, já era cultuado na história pré-Grécia antiga possivelmente como um deus da fertilidade, dos rebanhos, da magia, da divinação, das estradas e viagens, entre outros atributos. Ao longo dos séculos seu mito foi extensamente ampliado, tornando-se o mensageiro dos deuses e patrono da ginástica, dos ladrões, dos diplomatas, dos comerciantes, da astronomia, da eloquência e de algumas formas de iniciação, além de ser o guia das almas dos mortos para o reino de Hades, apenas para citarem-se algumas de suas funções mais conhecidas. Com o domínio da Grécia por Roma, Hermes foi assimilado ao deus Mercúrio, e através da influência egípcia, sofreu um sincretismo também com Tot, surgindo o personagem de Hermes Trismegisto. Ambas as assimilações tiveram grande importância, criando rica tradição e perpetuando sua imagem através dos séculos até à contemporaneidade, exercendo significativa influência sobre a cultura do ocidente e de certas áreas orientais em torno do Mediterrâneo, chegando até à Pérsia e à Arábia.
Hermes | |
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Hermes Logios, Atribuído a Fídias. Cópia romana, século I. Museu Nacional Romano, Roma | |
Nome nativo | Ἑρμής |
Morada | Monte Olimpo |
Símbolo | caduceu |
Pais | Zeus e Maia |
Irmão(s) | Ártemis, Afrodite, Musa, Cárites, Ares, Apolo, Dioniso, Hebe, Atena, Héracles, Helena, Hefesto, Minos |
Filho(s) | Pã, Hermafrodito, Abdero, Autólico, Eudoros, Angelia, Mírtilo |
Romano equivalente | Mercúrio |
As primeiras descrições literárias sobre Hermes datam do período arcaico da Grécia, e mostram-no nascendo na Arcádia. Já no primeiro dia de vida realizou várias proezas e exibiu vários poderes: furtou cinquenta vacas de seu irmão Apolo, inventou o fogo, os sacrifícios, sandálias mágicas e a lira. No dia seguinte, perdoado pelo furto das vacas, foi investido de poderes adicionais por Apolo e por seu pai Zeus, e por sua vez concedeu a Apolo a arte de uma nova música, sendo admitido no Olimpo como um dos grandes deuses. Mais tarde inúmeros outros escritores ampliaram e ornamentaram sua história original, tornando-o até um demiurgo, e surgiram múltiplas versões dela, não raro divergentes em vários detalhes, preservando-se porém suas linhas mais características. Foi um dos deuses mais populares da Antiguidade clássica, teve muitos amores e gerou prole numerosa. Com o advento do Cristianismo, chegou a ser comparado a Cristo em sua função de intérprete da vontade do Logos. As figuras de Hermes e de seu principal distintivo, o caduceu, ainda hoje são conhecidas e usadas por seu valor simbólico, e vários autores o consideram a imagem tutelar da cultura ocidental contemporânea.
Hermes aparentemente foi citado pela primeira vez em tabuletas escritas em Linear B pela civilização Micênica, datadas em mais de mil anos antes de Cristo, mas a identificação do nome não é clara, e sua etimologia é de toda forma controversa. Para alguns ela é simplesmente desconhecida, ou não tem origem grega. Pode ter derivado de hermeneus, que significa intérprete.[1][2][3] Platão, dando voz a Sócrates, tentou estabelecer uma origem do nome, dizendo que Hermes estava ligado ao discurso, à interpretação e à transmissão de mensagens, todas atividades ligadas ao poder da fala (eirein), e segundo supunha no curso do tempo eirein havia sido embelezada e transformada em Hermes.[4] A ideia mais corrente é que tenha derivado de herma, um altar ou marco de estrada que lhe era dedicado desde tempos remotos. Guthrie e Nilsson acreditam que significa "aquele do monte de pedras", a forma primitiva das hermas, mas esta origem também é disputada.[5][2]
As origens do mito de Hermes são incertas, e as opiniões variam entre considerá-lo um deus autóctone, cultuado desde o Neolítico, ou como uma importação asiática, talvez através de Chipre ou da Cilícia bem antes do início dos registros escritos na Grécia. O que parece certo é que seu culto estava estabelecido na Grécia desde uma época bastante remota, provavelmente fazendo dele um deus da natureza, dos agricultores e dos pastores. É possível também que tenha sido desde o início uma divindade com atributos xamânicos, ligados à divinação, à expiação, à magia, aos sacrifícios, à iniciação e ao contato com outros planos de existência, num papel de mediador entre os mundos visível e invisível.[6] Seja como for, tornou-se um dos deuses mais presentes em toda a mitologia grega, e dificilmente algum dos mitos principais não conta com a sua participação, assumindo uma grande quantidade de epítetos, formas e atributos. Entre as funções mais comumente ligadas a ele na literatura grega estão as de ser o mensageiro dos deuses, e o deus das habilidades da linguagem, do discurso eloquente e persuasivo, das metáforas, da prudência e da circunspecção, também das intrigas e razões veladas, da fraude e do perjúrio, da sagacidade e da ambiguidade, por isso era patrono dos oradores, dos arautos, dos embaixadores e diplomatas, dos mensageiros e dos ladrões. Como inventor, diz-se que havia inventado o fogo, a lira, a sírinx, o alfabeto, os números, a astronomia, uma forma especial de música, as artes da luta, da ginástica e do cultivo da oliveira; as medidas, os pesos e várias outras coisas. Pela sua constante mobilidade e outras qualidades intelectuais e relacionais, foi considerado o deus do comércio e do intercâmbio social, da riqueza advinda dos negócios, especialmente do enriquecimento súbito ou inesperado, das viagens, das estradas e encruzilhadas, das fronteiras e das condições limítrofes ou transitórias, da mudanças, dos umbrais, dos acordos e contratos, da amizade, da hospitalidade, do intercurso sexual; era o deus do jogo de dados, dos sorteios, da boa sorte; dos sacrifícios e dos animais sacrificiais, dos rebanhos e pastores, da fertilidade da terra e do gado. Seu ministério a Zeus não se resumia à condição de mensageiro, mas fora incumbido ainda de conduzir a sua carruagem e servir a sua taça, por isso era o deus dos banquetes. Também era quem levava as almas dos mortos para o Hades, e quem dirigia os sonhos enviados aos mortais por Zeus.[7][8][9] Em aspectos limitados, era também um deus da medicina, associado a Higeia e capaz de restaurar a virilidade, afastar pragas, ajudar o parto e curar com certas plantas.[10]
Fontes gregas
As primeiras descrições do mito de Hermes datam do período arcaico da cultura grega. Uma das mais importantes consta no Hino Homérico a Hermes, uma criação anônima dos séculos VII ou VI a.C. que trata de seu nascimento e primeiras proezas. O Hino abre com uma saudação ao deus, chamando-o de Senhor do Monte Cilene e da Arcádia, dos rebanhos de ovelhas, e mensageiro dos deuses. Também o nomeia como filho de Zeus, fruto de seu amor adulterino com Maia, uma ninfa filha de Atlas e Pleione, a mais velha, sábia e bela de sete irmãs, as Plêiades. Vivendo em uma caverna, escondida dos olhares humanos e principalmente do notório e tempestuoso ciúme de Hera, esposa de Zeus, Maia deu à luz "esta engenhosa criança, este hábil planejador de artifícios, o perseguidor e capturador de gado, o pastor dos sonhos, este cidadão da noite que espreita nos umbrais". Não demorou para mostrar sua origem divina: nascido pela manhã, já ao meio-dia estava tocando a lira, e à tardinha furtou o gado de Apolo.[11]
Ao sair da caverna, deparou-se com uma tartaruga, e disse que ela lhe anunciava uma boa sorte. Ao mesmo tempo conferiu-lhe dons: enquanto vivessem as tartarugas seriam uma proteção contra o mau-olhado, e ao morrerem aprenderiam a cantar belas canções. Tomou-a então e a levou para dentro, matou-a e usou seu casco para fazer o corpo da primeira lira. Com tripas de ovelha fez sete cordas, que afinou em harmonia. Logo, com o instrumento que inventara, acompanhou seu próprio canto, elevado em honra a seus pais. Sentindo fome, saiu para espiar os arredores, já imaginando astúcias. O sol já se punha, e Hermes se dirigiu para as montanhas de Piera, onde pastava o gado divino. Do rebanho ele tirou cinquenta vacas, e as conduziu, tangendo-as com um bastão, por caminhos labirínticos para evitar ser seguido através dos rastros. Também fez com que andassem de marcha-a-ré, com o mesmo objetivo, e para si confeccionou um par de sandálias mágicas com folhas de tamareira e mirtilo, para que pudesse deslizar pelo caminho e prosseguir com rapidez, sem deixar pegadas reconhecíveis. Um velho vinhateiro o viu, mas foi avisado para nada relatar a ninguém. Enquanto ia com o gado em direção à sua caverna, deteve-se junto ao rio Alfeu, alimentou a manada e deu-lhe de beber. Ao mesmo tempo inventou o fogo, friccionando folhas de loureiro com uma acha de lenha. Assim fez uma fogueira e assou duas reses, deleitando-se com o aroma. Dividiu a carne e a gordura em doze porções e as colocou em um lugar alto, como um monumento à sua façanha. Quanto ao resto dos despojos, queimou-os no fogo, jogou suas sandálias no rio, apagou a fogueira, escondeu as outras reses em Pilos e eliminou todos os traços de suas ações. Então voltou para a gruta, passou pelo portão através do buraco da fechadura sob a forma de fumaça ou névoa, e deitou no berço como se nada acontecera. Mas sua mãe a tudo observara, e repreendeu-o, dizendo que ao concebê-lo Zeus havia criado um bom problema tanto para os deuses como para os homens. Hermes entretanto replicou vigorosamente, afirmando sem temor sua origem divina e reivindicando um tratamento igual ao que recebia seu meio-irmão Apolo. Se Zeus o negasse, ele então se transformaria num príncipe dos ladrões. Se Apolo o perseguisse, destruiria seu santuário e tomaria seu ouro.[11]
Chegando Apolo junto de seu rebanho, deu conta da falta das cinquenta vacas e iniciou sua busca. Encontrou o vinhateiro, que embora não tenha acusado Hermes do furto, deu algumas pistas vagas. Uma ave voou como num augúrio, e Apolo de imediato suspeitou de Hermes, mas ficou perplexo ao ver os rastros confusos que a manada deixara, e as estranhas marcas das sandálias de Hermes. Assim partiu direto para a cova onde Hermes nascera, e o encontrou fingindo dormir, em seu berço. Perscrutou o lugar com sua luz mas não encontrou o gado, e exigiu do bebê que revelasse onde o escondera, sob severas ameaças. Hermes negou qualquer conhecimento do caso, e alegando sua pouca idade, disse que jamais poderia ter sido o autor do furto. Mas Apolo não se deixou iludir, e entre aborrecido e divertido, chamando-o de enganador e ardiloso, previu que em muitas noites Hermes penetraria nas casas dos homens e silenciosamente os privaria de seus bens, e tomaria o gado dos pobres pastores. Assim ganharia fama como Mestre dos Ladrões. Tomou a criança em seus braços e a levou para o tribunal de Zeus, para que a disputa fosse resolvida. Mesmo diante do pai o menino negou as acusações, e Zeus, rindo, ordenou que ele revelasse o esconderijo do gado.[11]
Obediente, Hermes cumpriu o mandado, mas vendo Apolo que a criança pudera matar duas reses ainda tão pequena, temeu sua futura força, e tentou impedir que ele crescesse atando-o com grossas ramagens de salgueiro, mas o menino as rompeu, caíram longe, e ao tocar o chão imediatamente cresceram tanto que cobriram todo o gado, surpreendendo Apolo. Então Hermes tomou da lira e começou a cantar toda a teogonia, celebrando Mnemosina, deusa da memória, acima de todos os deuses. Encantado, Apolo disse que sua canção valia bem cinquenta vacas, parecia superior a tudo que ele mesmo, como deus da música, conhecia, e que a disputa poderia encerrar em paz. E jurou fazer do irmão um líder entre os imortais, prometendo conceder-lhe muitos dons. Hermes, louvando o irmão, disse que por sua vez lhe dava a ciência desse novo canto e da execução à lira, recomendando que os praticasse com dignidade. Entregou-lhe a lira, e disse que passaria a cuidar dos rebanhos. Apolo então lhe deu seu próprio bastão e o ordenou como pastor divino. Então levaram as reses de volta à sua origem e subiram ao Olimpo. Para si Hermes fez outro instrumento, a sírinx, uma espécie de flauta. Mas Apolo, temendo que no futuro Hermes voltasse a enganá-lo, pediu que o irmão fizesse um juramento solene de jamais armar novos estratagemas contra ele ou suas posses, no que Hermes consentiu. Feita a paz entre ambos, do céu Zeus mandou sua águia em sinal de aprovação, selando sua aliança. Satisfeito, Apolo prometeu novos benefícios: o faria rico, honrado e famoso, hábil em tudo o que empreendesse que fosse bom, tanto na palavra como nos atos, e capaz de levar tudo a termo, mas não pôde compartilhar com ele os dons da profecia e do conhecimento da vontade de Zeus, que só Apolo possuía, impedido que estava pelo pai de fazê-lo. Em compensação, deu a Hermes três virgens aladas, que ensinavam a divinação e diziam a verdade quando alimentadas com mel. Também tinham o poder de levar as coisas ao seu termo. Se Hermes decidisse, depois de aprendê-la, poderia ensinar tal arte a alguns homens de sua escolha. Zeus confirmou os dons de Apolo sobre Hermes, e acrescentou outros: atribui-lhe o comando das aves divinatórias, dos leões, dos ursos, dos cães e de todos os rebanhos da Terra, além de fazê-lo mensageiro junto a Hades, função de grande prestígio.[11]
Outras fontes arcaicas acrescentaram episódios à sua história. Homero e Hesíodo o retrataram muitas vezes como autor de atos habilidosos ou enganosos, e também como um benfeitor dos mortais. Na Ilíada foi chamado de "o portador da boa sorte", "guia e guardião" e "excelente em todas as artimanhas", foi um dos aliados divinos dos gregos contra os troianos, apareceu tirando Ares do vaso de bronze onde havia sido preso por Oto e Efialtes, favoreceu Forbas com riquezas. Protegeu Príamo e usando seus poderes mágicos o levou invisível por entre os gregos até Aquiles para recuperar o corpo de seu filho Heitor, ensinando ainda como sensibilizar o inimigo. Quando Príamo o conseguiu, levou-os de volta para Troia da mesma forma.[12] Na Odisseia ele ajudou ao protagonista, Odisseu, informando-o sobre o triste destino de seus companheiros, transformados em animais pelo poder de Circe, e instruiu-o a se proteger dos seus feitiços mascando uma erva mágica e como agir diante dela; transmitiu a Calipso a ordem de Zeus para que ela libertasse o mesmo herói de sua ilha, para prosseguir sua viagem de volta a casa, e depois que Odisseu matou os pretendentes de sua esposa, Hermes reuniu suas almas e as levou para o Hades.[13] Em Os Trabalhos e os Dias, quando Zeus ordenou a Hefesto que criasse Pandora para desgraçar a humanidade, punindo o ato de Prometeu de dar o fogo aos homens, cada deus lhe concedeu um dom, e o de Hermes foi as mentiras e palavras sedutoras, e um caráter dúbio. Depois foi encarregado de levá-la como esposa para Epimeteu.[14]
Os autores clássicos documentaram a amplitude do mito deixando relatos de outros episódios. Ésquilo mostrou Hermes a ajudar Orestes a matar Clitemnestra sob uma identidade falsa e outros estratagemas,[15] e disse também que ele era o deus das buscas, e daqueles que procuram coisas perdidas ou roubadas.[16] Sófocles fez Odisseu invocá-lo quando precisou convencer Filocteto a entrar na Guerra de Troia do lado dos gregos, e Eurípides o fez aparecer para ajudar Dolon na espionagem da armada grega.[15] Esopo, que pretensamente havia recebido o seu dom literário de Hermes, o colocou em várias de suas fábulas, como regente do portão dos sonhos proféticos, como deus dos atletas, das raízes comestíveis, da hospitalidade; também disse que Hermes havia atribuído a cada pessoa o seu quinhão de inteligência.[17][18] Píndaro e Aristófanes documentam também a sua recente associação com a ginástica, que não existia no tempo de Homero,[19] Aristóteles sistematizou o conceito da hermenêutica, a ciência da interpretação, da tradução e da exegese, a partir dos atributos de Hermes.[20] e Eudoxo de Cnido, um matemático, chamou de Hermes o planeta hoje conhecido como Mercúrio, mudança ocorrida graças à influência romana posterior.[21]
Hermes helenista
Vários outros escritores do período helenista citaram Hermes e ampliaram o rol de seus feitos. Calímaco disse que ele se disfarçou como um ciclope para assustar as Oceânides desobedientes à sua mãe, e que ele era o deus do aprendizado fácil.[22] Filóstrato o chamou de deus da sabedoria, da filosofia e das recompensas.[23] Um dos Hinos Órficos é dedicado ao Hermes Khthonios, indicando que ele também era um deus do mundo subterrâneo. Ésquilo o chamara por este epíteto várias vezes.[24] Outro é o Hino Órfico a Hermes, onde sua associação com os jogos atléticos é celebrada em tom místico.[25] Flégon de Trales disse que ele era invocado para afastar fantasmas,[26] e o Pseudo-Apolodoro relatou vários eventos: participou na Gigantomaquia em defesa do Olimpo; colocou Hércules à venda como escravo para que este expiasse a morte de Iphitos; recebeu a incumbência de levar Dionísio bebê para ser cuidado por Ino e Athamas, e depois pelas ninfas da Ásia; acompanhou Hera, Atena e Afrodite num concurso de beleza; favoreceu o jovem Hércules dando-lhe uma espada quando ele terminou sua educação, e emprestou suas sandálias a Perseu para que ele matasse a Górgona com mais facilidade.[27] Os príncipes trácios o identificaram com seu deus Zalmoxis, considerando-o seu ancestral.[28]
Ao longo do Helenismo Hermes adquiriu um status particularmente importante como imagem do Logos e intérprete da vontade divina, e passou de ser um mero caractere expressivo para agir criativamente, assumindo funções de demiurgo, um acréscimo que é atribuído principalmente aos estoicos, gnósticos e neoplatônicos. Aparentemente nesta época se iniciou a fusão de Hermes com o deus egípcio Tot, que veio a florescer na figura de Hermes Trismegisto. Smith disse que a identificação remontava período clássico, e que os neoplatônicos acreditavam que Platão e Pitágoras haviam aprendido dele, mas a datação atualmente aceita da literatura hermética é bem mais tardia.[29][30][31] Seu nome só aparece, de fato, registrado entre os séculos II e III d.C.[32]
O Hermes romano: Mercúrio
Quando Roma entrou em contato com a cultura grega, operou um sincretismo de sua antiga divindade Mercúrio com o Hermes grego. Até então apenas um deus do comércio, Mercúrio foi investido de todas as demais características e atributos do deus grego.[33] Entretanto, é possível que o próprio Mercúrio tenha sido uma importação da Grécia, uma vez que anais romanos informam que o culto foi estabelecido entre eles por ordem dos Livros Sibilinos.[34] Escritores romanos deram também sua contribuição própria ao mito de Hermes, acrescentando-lhe várias outras histórias e apresentando versões alternativas de tradições já existentes. Desde aquela época ambos os deuses se tornaram na prática indistinguíveis, embora não sem alguma resistência, como a oferecida pelos feciais, uma classe sacerdotal romana, que jamais reconheceu a identidade entre ambos. A literatura, porém, atesta que a assimilação foi ampla e de duradoura penetração,[33] especialmente do reinado de Augusto em diante.[35] Higino falou de sua associação com a palavra e o alfabeto, acrescentando que ele inventara ou explicara as línguas do mundo para os homens, que havia criado a constelação do Triângulo para compensar o pouco brilho do Carneiro e assinalar sua posição, colocando-a sobre esta última, e criara a constelação da Lebre, para homenagear sua fertilidade. Também disse que o planeta Mercúrio foi-lhe consagrado porque o deus fora o primeiro a estabelecer a sequência dos meses; o chamou ainda de inventor da arte da luta.[36] Estácio e Caio Valério Flaco confirmaram sua ligação com o submundo e com o poder de comandar os espíritos dos mortos;[37] Ovídio, Antonino Liberal e Virgílio repetiram várias histórias do mito grego original, incluindo algumas que ilustram ocasiões em que Hermes exerceu sua ira ou foi o executor da vingança de Zeus, transformando Aglauro em pedra por causa de sua inveja e por ter dificultado seu acesso a Herse, a quem o deus desejava; transformando Agrão em ave porque o insultara; matando Ágrio e Ório por se recusarem a seguir as leis da hospitalidade, jogando a casa de Quelone num rio e a transformando em tartaruga por ter-se recusado a atender ao convite para as bodas de Zeus com Hera.[38] Também neste período o grego Pausânias incluiu em sua Descrição da Grécia uma valiosa relação de vários de seus locais de culto na Grécia, identificando estátuas e narrando derivações de seu mito.[39]
Os romanos, expandindo seus territórios sobre uma vasta região, identificaram várias divindades locais com Mercúrio, aumentando a complexidade do sincretismo em torno do Hermes original e das formas de seu culto. Entre elas, Mitra, um importante deus solar oriundo do oriente, com várias estátuas mercuriais encontradas em mitreus na Lusitânia, Hispânia, Numídia e Germânia, tendo adquirido traços solares; Cissônio, Arvernorix, Eso, Iovantucaro, Moco, Visúcio, Dumiatis, Artaius, Gebrínio, todos deidades menores celtas;[40] mas também com Lugus e Toutatis, deuses pan-celtas largamente venerados, e Odim outro grande deus, este da Germânia.[41][35] Fundindo-o ao deus egípcio Anúbis, formaram Hermanúbis, embora este tivesse uma difusão limitada à região de Alexandria, mas através dele traços de Hélio foram assimilados, nascendo Hélios-Hermanúbis, que foi por sua vez identificado com Serápis.[42]
Hermes Trismegisto
Outro sincretismo de enorme influência subsequente que se completou durante o período romano foi o da formação do Hermes Trismegisto, ou "Hermes três-vezes-grande". Segundo uma de suas histórias, Hermes havia viajado ao Egito e lhe dado leis e a escrita, e Tot era um deus imensamente popular no Egito, ligado ao tempo, ao destino, à ordem cósmica, à lei, à sabedoria, à cultura e ao conhecimento, à religião e instituições civis, aos rituais, ao oculto e à magia, e era também juiz e guia dos mortos. Havendo vários pontos de contato entre ambos, na assimilação Hermes adquiriu o status de sacerdote, filósofo e governante, e Tot foi também magnificado em seu país com vários atributos do outro. As origens desta fusão são pouco claras, mas parece que se deve em parte ao estabelecimento de colonos gregos no litoral egípcio, e no início da era cristã já havia uma sólida tradição ligada a este personagem, que se tornara conhecido em largas áreas do mundo antigo em virtude de sua doutrina filosófica e religiosa. Fowden disse que Trismegisto pode ser descrito como uma divindade verdadeiramente cosmopolita, e que o resultado da fusão foi algo maior do que suas partes constituintes, um deus que foi colocado entre os principais do panteão romano. Foi produzida muita literatura sobre ele, e alegou-se que ele mesmo deixara escritos doutrinais num conjunto que veio a ser conhecido como Corpus Hermeticum, cujo conteúdo é uma eclética reunião de elementos de religião, filosofia, divinação, teurgia, ritualística, esoterismo, magia, astrologia, ciências, política e alquimia, influenciado por várias correntes de pensamento egípcias, gregas, romanas e cristãs. A complexidade conceitual que o cercou foi tamanha que alguns escritores, como Cícero, chegaram ao ponto de subdividí-lo em vários Hermes diferentes, e pelo menos parte do mundo romano o via como um homem sábio, até divinizado, mas não como um verdadeiro deus. Plotino, Apolônio de Tiana, Lactâncio, Tertuliano e Amiano Marcelino assim o consideravam, e por isso sua filosofia, o chamado Hermetismo, pôde ser aproveitada pelos primeiros cristãos e sobreviver como precursora da fé cristã.[43][44][45]
Recepção do mito nas Idades Média e Moderna
A tradição de Trismegisto se irradiou para o ocidente e também para o oriente, encontrando ao longo da Idade Média grandes centros de preservação, ainda que seletiva, no Império Bizantino, na Pérsia e Arábia, mas mesmo escritores medievais da Europa ainda o consideravam uma autoridade. Pedro Abelardo, São Boaventura e São Tomás de Aquino o viam como um grande filósofo, e Alberto Magno o citou como uma referência na astrologia.[46][47] Entre os árabes Trismegisto na maior parte das vezes foi associado ao profeta Idris, que no Corão aparece como uma figura exaltada por Alá.[48] Segundo Moore, no final da Idade Média o caráter de Hermes-Mercúrio estava ligado mais fortemente à filosofia de Trismegisto; iconografia da época o representa às vezes como um escriba ou bispo.[49]
Quanto a Hermes-Mercúrio, alguns dos primeiros Padres da Igreja o compararam a Cristo como veículo do Logos, e foi associado a vários outros personagens da tradição judaico-cristã, como Moisés, Metatron, São Paulo, São João Batista e Enoque, estando assim também ele presente na origem da cultura religiosa europeia moderna. Segundo Mircea Eliade ele foi um dos poucos deuses do panteão clássico que não sucumbiram diante da ascensão do Cristianismo.[50][51] Lawson afirmou que parte da simbologia ligada ao arcanjo São Miguel é uma herança de Hermes, lembrando que ággelos, em grego, significa mensageiro, e é a origem da palavra anjo; Hermes era o ággelos áthanáton, o mensageiro dos imortais.[52] Essa associação parece comprovada pela quantidade de capelas francesas dedicadas a São Miguel erguidas sobre antigos templos de Mercúrio, que havia sido largamente sincretizado a deuses celtas correspondentes.[53][54] Exemplos nas ilhas britânicas também foram atestados.[55] Tradições medievais faziam associações semelhantes quando descreviam São Miguel como aquele incumbido de conduzir os mortos para a Luz Eterna, e cemitérios medievais muitas vezes foram consagrados a ele como o protetor dos mortos, remetendo à função de Hermes como psicopompo, o condutor das almas para o reino de Hades.[53][54] Um camafeu pós-antigo foi encontrado com uma imagem de Hermes contendo a inscrição "Miguel".[55] Taylor notou que a imagem de Hermes como guardião dos rebanhos é o protótipo da figura do Cristo como o Bom Pastor, especialmente quando foi figurado como Hermes Crióforo (Kriophoros; o que carrega o cordeiro), e comparou a figura de sua mãe Maia com a da Virgem Maria, que incorpora os mesmos atributos de uma Grande Mãe.[56]
O chamado Renascimento floresceu a partir de um olhar para o passado, recuperando tradições gregas, romanas e orientais, e nesse espírito Hermes e Mercúrio, já considerados um mesmo deus, apareceram na cena cultural europeia revigorados, contribuindo para nutrir a principal corrente de pensamento da época, o Humanismo, através de vários aspectos, e inseminando também a iconografia coeva. Nesta altura Trismegisto estava na visão geral humanizado, não sendo considerado um deus, mas um grande filósofo, contemporâneo de Moisés e inspirador de Platão e dos neoplatônicos. Sua filosofia eclética exerceu enorme impacto sobre os humanistas e os ocultistas do Renascimento, que interpretaram essa herança diversificada dentro da óptica cristã.[57][58][59] A iconografia clássica de Hermes-Mercúrio se inseriu numa onda de reapreciação da arte greco-romana, contribuindo para o desenvolvimento de uma nova forma de representação do corpo humano, que, depois de ser desprezado na Idade Média, ressurgia enobrecido e idealizado.[60][61] Descobriu-se na mitologia antiga símbolos velados de elevada sabedoria, as mesmas verdades pregadas pelo Cristianismo, e disso se concebeu a ideia de que todas as religiões são em essência igualmente dignas, e que a forma dos mitos fora criada para proteger a Verdade da profanação vulgar. Os mitos paralelamente serviram como base interpretativa para uma Psicologia incipiente, fornecendo explicações para várias expressões psíquicas e caracterológicas, e processos da natureza e do homem, até então sem qualquer explicação disponível.[61][62] Hermes-Mercúrio foi o modelo do orador perfeito do Renascimento, quando a retórica estava novamente sendo cultivada com grande entusiasmo e influenciava a consolidação de todo um sistema formal e pedagógico que penetrou em vários domínios da arte e da cultura e foi uma das bases da fundação do Academismo.[63][64][65][59] Deve-se também ao progresso da hermenêutica outra parcela da transmissão da memória de Hermes ao mundo moderno, uma disciplina que se dedica à interpretação da tradição literária e cultural, e denominada assim em homenagem ao deus que era o mensageiro dos deuses e intérprete de sua vontade para os mortais.[66] Heller disse que sem Hermes não é possível nenhuma hermenêutica.[67]
Hermes-Mercúrio igualmente se popularizou através da astrologia como regente dos signos de Gêmeos e Virgem, influenciando aspectos relacionais, comunicativos e cognitivos, e através da astrologia e da alquimia - áreas onde Trismegisto foi de particular importância - repercutiu sobre as ciências práticas e a filosofia da ciência até o século XVIII.[62][68][58][69][70] Como exemplos, Copérnico justificou sua teoria heliocêntrica a partir da convicção de Trismegisto de que o sol era um deus visível,[70] e mais tarde Isaac Newton se deteve atentamente na alquimia e escreveu um comentário sobre A Tábua de Esmeralda, parte do Corpus Hermeticum, tentando unir a ciência e a espiritualidade.[71][72] Na alquimia Hermes-Mercúrio desempenhava papel central, e seu símbolo material era o metal Mercúrio, que por suas qualidades ambíguas - o único metal que se mantém líquido à temperatura ambiente - deu origem a uma grande quantidade de novos mitos alquímicos. Era considerado a essência divina no mundo, fixo e volátil, possuindo em si as propriedades da Lua e do Sol, da prata e do ouro, e por isso, era visto como hermafrodita. Cientistas-alquimistas como Newton e Boyle acreditavam que Mercúrio era a base de todos os metais, e que podia ser extraído de todos através de métodos adequados. Era a "água permanente", a água primordial da Criação, sobre a qual o espírito de Deus se movia, o princípio por excelência de todas as transformações, o maior dos solventes, capaz de decompor todos os metais, recebendo o nome de "água da morte", mas também era de onde os metais transmutados nasciam, sendo chamado assim de "água da ressurreição" e "fonte do batismo". Como toda a alquimia era ela mesma um símbolo do processo de purificação espiritual para a conquista da Redenção, Hermes-Mercúrio era o guia das almas, o próprio Salvador que leva o indivíduo da escuridão da ignorância à luz da realização final, estando na origem, nos meios e no fim, e sendo uma imagem da própria pedra filosofal, que transmutava toda a impureza em ouro, a carnalidade em espiritualidade.[73]
Por todos esses motivos, desde então voltou a se multiplicar um abundante imaginário visual e literário sobre Hermes. Entre os pintores célebres que representaram Hermes ou Mercúrio estão Andrea Mantegna, Sandro Botticelli, Bartholomäus Spranger, Claude Lorrain, Dosso Dossi, Giovanni Battista Tiepolo, Antonio da Correggio, Peter Paul Rubens, Hendrick Goltzius, François Boucher, William Turner e Frederic Leighton; entre os escultores, Benvenuto Cellini, Giambologna, Antico, Adriaen de Vries, Antoine Coysevox, Jean-Baptiste Pigalle, François Rude e Augustin Pajou.[74][75][76] Dos poetas que o mencionaram ou lhe dedicaram poemas, contam-se Dante Alighieri, Gérard de Nerval, Rainer Maria Rilke,[77] William Blake,[78] Johann Wolfgang von Goethe,[79] John Keats,[80] e Henry Wadsworth Longfellow, entre muitos outros.[81]
Hermes teve grande quantidade de amores com deusas, semideusas e mulheres mortais, e gerou numerosa descendência. Entre os imortais, com Afrodite, a deusa do amor, teve Hermafrodito, e algumas versões do mito o dão como pai de Eros, concebido com a mesma mãe;[82] Em algumas histórias ele foi pai ou filho de Príapo.[83] Pã foi fruto dos amores de Hermes com a ninfa Dríope ou, em algumas versões, Penelopeia, uma ninfa, ou Penélope, esposa de Odisseu. Seduziu Brimo ou Hécate às margens do lago Boibes, com Deira gerou Elêusis; relacionou-se com Peito, a deusa da persuasão, tomando-a como esposa; e tentou cortejar Perséfone, mas foi rejeitado. Com Carmenta gerou Evandro, com uma ninfa não identificada gerou Dáfnis; com Ocirroé, Caicos; com várias Oréades, teve filhas ninfas. Entre as mortais, amou Aglauro, princesa da Ática, gerando Cérix; Acale, princesa de Creta, gerando Cídon; Antianira, que lhe deus dois filhos, Écio e Êurito; Apemósine, que foi morta pelo irmão antes de dar à luz; Áptale, sendo o pai de Euresto; Eriteia, princesa da Ibéria, gerando Norax; Creusa ou Herse, princesa da Ática, gerando Céfalo; Ifítime, que lhe deu três filhos sátiros, Ferespondo, Lico e Prônomo; Quione, que deu à luz Autólico; Ctonófile, rainha de Sicião, sendo pai de Polibo; Clítie ou Teóbule, mãe de Mirtilo; Líbia, princesa da Líbia ou de Náuplia, mãe de Líbis; Filodâmia, princesa de Argos, mãe de Fáris; Polímele, mãe de Eudoro, e Trônia, princesa do Egito, que gerou Árabo. Teve também romances com alguns homens, segundo algumas versões de sua história. Foram eles Crocos, a quem matou acidentalmente em um jogo de disco, e a quem depois transformou em uma flor; Anfião, a quem teria concedido o dom do canto e a habilidade à lira, por cuja arte operou prodígios, e Perseu, a quem também manifestou especial proteção.[84] Os romanos lhe deram mais um amor, Larunda, com quem gerou os Lares, importantes deidades domésticas.[85]
“ | Com asas nos pés, voas pelo espaço, cantando toda a Música, em todas as línguas... Nós te honramos, Hermes, ajuda-nos em nosso trabalho! Dá-nos um falar eloquente, e um vigor jovial. Supre nossas necessidades, concede-nos clara memória. Dá-nos a boa sorte, e encerra nossas vidas em paz. Excerto do Hino Órfico a Hermes |
” |
Sua mais antiga sede de culto era o monte Cilene, na Arcádia, onde o mito diz que ele havia nascido. A tradição afirma que seu primeiro templo foi erguido por Licaão, filho de Pelasgo. De lá o culto teria sido levado para Atenas, e dali se irradiado para toda a Grécia, e segundo Smith seus templos e estátuas eram extremamente numerosos.[7] Luciano de Samósata disse que se viam templos de Hermes por toda parte.[86] Depois da assimilação por Roma, multiplicaram-se por toda a área do Império.[7] Em muitos locais seu templo era consagrado em conjunto com Afrodite, como na Ática, Arcádia, Creta, Samos e na Magna Grécia. Vários ex-votos encontrados em seus templos revelavam sua atuação como iniciador de jovens na vida adulta, entre eles soldados e caçadores, uma vez que a guerra e certas formas de caça cerimonial eram consideradas como provas iniciatórias. Esta função do deus explica o motivo de algumas imagens encontradas em templos e outras em vasos o mostrarem como um adolescente, e a partir de iconografia em que ele aparece junto de sátiros, de narrativas literárias e de seu culto combinado ao de Afrodite, fica evidente que entre as iniciações que Hermes patrocinava estava a sexual.[87]
Hermes, como patrono da ginástica e da luta, tinha estátuas em todos os ginásios e era adorado também do santuário dos Doze Deuses em Olímpia, onde se celebravam os Jogos Olímpicos, os mais célebres de todos. Seu culto ali era realizado em um altar consagrado conjuntamente a Apolo.[88] Sua festividade especial era a Hermaia, que se celebrava com sacrifícios a Hermes e jogos atléticos e ginásticos, tendo sido estabelecida possivelmente no século VI ou V a.C. Ésquines disse que as leis reguladoras das Hermaias haviam sido estabelecidas por Sólon ou Drácon, mas não há documentação sobre os ginasiarcas antes do século IV a.C. Entretanto, Platão referiu que Sócrates assistiu a uma Hermaia. De todos os festivais gregos envolvendo jogos, as Hermaias eram os que mais se aproximavam do caráter de uma iniciação, até porque a participação neles era restrita a jovens (ageneioi) e meninos (paides), excluindo adultos.[89] A premiação não contemplava apenas a vitória pura e simples, mas várias outras aptidões. Tendo um caráter iniciatório, os vencedores das Hermaias voltavam para suas cidades como heróis e adultos que haviam adquirido honra (timé). A Hermaia de Pelene se tornou particularmente concorrida, atraindo competidores de regiões distantes. Seu prêmio era um manto grosso.[88] Por outro lado, as Hermaias adquiriram uma fama como uma ocasião em que homens adultos procuravam jovens como amantes, o que levou à criação de leis em Atenas, no século IV a.C., contra a presença de adultos nos jogos. Isso se deveu ao uso abusivo de um festival sagrado para fins profanos, e não porque houvesse uma censura ao relacionamento homossexual masculino, pois é sabido que naquela época a sociedade grega, dentro do contexto da paideia, via tal relação como benéfica e útil para a educação do jovem, tendo também uma feição iniciática.[89] Um documento preservou o regulamento das Hermaias celebradas em Bereia, na Macedônia, já na era cristã, e é de interesse sua transcrição parcial:
- "O ginasiarca deverá celebrar a Hermaia no mês de Hiperbereteu, deve sacrificar a Hermes e oferecer como prêmio uma arma e três outros para a aptidão física (euexia), boa disciplina (eutaxia) e treinamento diligente (philoponia) para competidores de até trinta anos. O ginasiarca escolherá uma lista de sete homens dentre os presentes, que julgarão o concurso de boa disciplina, deve fazer um sorteio e escolher três que devem jurar por Hermes que julgarão justamente aqueles que estiverem em melhor condição física, sem favoritismo ou hostilidade de qualquer espécie... Os vencedores receberão coroas naquele dia e serão autorizados a prenderem uma faixa à cabeça de quem quiserem. Na Hermaia o ginasiarca também organizará uma corrida de tochas para meninos e jovens. Os sacerdotes devem receber, ao celebrar a Hermaia, de cada um que frequentar o ginásio, não mais que duas dracmas, e devem festejá-los no ginásio, e devem apontar sucessores para a Hermaia futura. Os treinadores também devem sacrificar a Hermes ao mesmo tempo que os sacerdotes, e não devem receber mais de uma dracma de cada menino, e devem dividir entre eles a carne do sacrifício... Os vencedores devem dedicar os prêmios que receberem para o próximo ginasiarca, dentro do prazo de oito meses, senão o ginasiarca imporá uma multa de cem dracmas. O ginasiarca tem o poder de açoitar e multar quem ficar conversando ou não competir justamente nos jogos, e também se alguém ceder a vitória a outro..."[90]
Entre os itens que lhe eram consagrados estavam a palmeira, a tartaruga, o galo, o bode, o número quatro, vários tipos de peixe, e seus sacrifícios envolviam incenso, mel, bolos, porcos, cordeiros e bodes jovens. Por estar ligado à eloquência, as línguas dos animais sacrificados lhe pertenciam.[7][91] No santuário de Hermes Prômaco em Tânagra se cultivava uma planta de medronheiro sob a qual se acreditava que ele tivesse sido criado,[92] e nos montes Feneos corriam três fontes que lhe eram sagradas, pois acreditava-s que ali ele fora banhado ao nascer. Uma estátua de Hermes guardava a entrada do templo de Apolo em Tebas, e havia algumas em Tânagra em que ele aparecia carregando um cordeiro (Crióforo), pois uma lenda dizia que ele afastara a peste da cidade carregando um cordeiro em torno dos muros. Homero disse que as últimas libações de um banquete eram dedicadas a Hermes, e Pausânias, que em seu tempo havia estátuas suas em todos os ginásios, seguindo um costume antigo que estava então sendo copiado pelos bárbaros. Em muitas cidades havia uma estátua na praça do mercado. Uma das formas de culto era oracular, como a estabelecida em Farai. Na praça do mercado da cidade se erguera uma estátua de Hermes Agoreu, diante da qual havia um coração esculpido em pedra, com duas lâmpadas de óleo atadas com faixas de couro. O suplicante deveria queimar incenso sobre o coração, acender as lâmpadas e colocar uma moeda local no lado direito do altar. Então deveria sussurrar ao ouvido da estátua sua questão, e em seguida tapar seus próprios ouvidos e sair do mercado. Quando estivesse fora, abriria os ouvidos, e a primeira palavra ou frase que ouvisse teria um caráter divinatório.[93]
Entre as suas imagens de culto as mais comuns eram as hermas, colocadas em todas as estradas para delimitar fronteiras ou assinalar distâncias, nas entradas das casas, nas divisões de bairros e nas praças do mercado. As hermas eram pilares quadrangulares com apenas a cabeça do deus esculpida no topo; muitas vezes aparecia também um falo, reforçando sua associação com a fertilidade e seu poder contra o mau-olhado e os espíritos malignos, uma vez que o símbolo da virilidade era também considerado protetor, estando ligado à força guerreira. Suas formas mais antigas eram simples montes de pedra, ou um pilar de pedra sem escultura alguma, mas Heródoto afirmou que as hermas itifálicas eram tão antigas quanto os pelasgos, o povo pré-helênico que ensinara os atenienses a esculpi-las.[93][94][95] Pausânias disse que em Eleia a principal imagem de culto de Hermes era um pênis ereto, sobre um pedestal.[96] As hermas também eram comuns nos ginásios, nos estádios e nos hipódromos gregos, além de serem instaladas no Circo Máximo romano.[97] Sua sacralidade era protegida em mistérios que se tornaram parte dos Mistérios da Samotrácia. Era também um dos deuses patronos dos Mistérios de Elêusis, pois era o deus que escoltava Perséfone para o submundo, e a cada primavera a trazia para a superfície.[93]
Suas várias funções e poderes eram descritos pelos seus numerosos epítetos, dos quais alguns são: Acacésio, aquele que não pode ser ferido, ou que não fere; Agetor, líder, condutor ou guia; Agoreu, presidente das assembleias e mercados; Argifontes, matador de Argos; Cataíbates, condutor das almas para o submundo; Ctésio, protetor das propriedades; Eriúnio, Dôtor Eaôn, doador da boa sorte; Númio, Epimélio, protetor dos pastores e pastagens; Prômaco, campeão ou vencedor; Propileu, protetor das entradas, e Pronau, das entradas dos templos; Tricéfalo, guardião das encruzilhadas; Enagônio, regente dos jogos ginásticos; Hermeneuta, o intérprete e tradutor; Diáctoro, guia, ministro, mensageiro; Ágelo, mensageiro divino; Felétes, ladrão, e Arcos Feletéon, rei dos ladrões; Clépsifro, Mecaniota, enganador, maquinador; Polítropo, móvel, veloz, em muitos lugares; Poneômeno, ocupado; Dais Hetairos, companheiro de festejos; Carídota, doador da alegria; Acáceta, gracioso; Cídimo, glorioso; Aglaos, resplandecente, esplêndido; Crato, Crátero, forte, poderoso; Mastério, mestre das buscas; Pompeu, guia; Eriúnio, muito útil.[98] A multiplicidade de aspectos de Hermes, na visão de Walter Otto, não deve ser motivo de confusão. Como disse,
- "Na concepção de uma deidade do seu tipo não pode haver propósito em se diferenciar qualidades primitivas e tardias em busca de alguma linha de desenvolvimento para conectar umas com outras. A despeito de sua multiplicidade elas são de fato uma só, e se um traço especial apareceu antes do que outros, ainda permanece o mesmo significado que encontrou uma nova via de expressão. O que quer que se possa pensar de Hermes nos tempos primitivos, um esplendor emanado das profundezas deve ter de imediato deslumbrado os olhos de modo que foi percebido todo um mundo no deus e o deus em todo o mundo".[99]
A imagem de Hermes variou conforme evoluiu a arte e cultura gregas. Em tempos arcaicos ele é usualmente um homem maduro, barbado, com um traje de viajante, arauto, ou pastor. No classicismo e helenismo ele é via de regra figurado nu, com porte atlético, como convém ao deus da palestra e dos ginastas, ou com um manto, fórmula que se fixou predominantemente pelos séculos afora. Quando é representado como Lógio (orador), sua atitude é condizente com o atributo. Uma estátua célebre, hoje conhecida como Hermes Ludovisi ou Hermes Lógio, representada na abertura do artigo, é atribuída a Fídias, e Praxíteles criou outra, também muito afamada, mostrando-o com Dionísio bebê aos braços. Em todas as épocas, porém, atravessando os períodos helenista, romano, e ao longo da história do ocidente até os dias de hoje, vários de seus objetos característicos estão presentes como forma de identificação, mas nem sempre todos aparecem juntos.[100][7]
Entre estes objetos está um chapéu de abas largas, o pétaso, muito usado pelos povos rurais da antiguidade para se proteger do sol, e que em épocas tardias foi adornado com um par de pequenas asas; às vezes o chapéu não está presente, mas pode ter então asas nascendo da cabeleira. Porta um bastão, chamado de rabdos (vara) ou skeptron (cetro), que se refere como sendo uma varinha mágica. Algumas fontes primitivas dizem que este foi o bastão que recebeu de Apolo, mas outras não acusam a procedência. Parece que podem ter sido dois bastões, com o tempo fundidos em um, um deles um cajado de pastor, como consta no Hino Homérico, e outro uma vara mágica, como dizem alguns autores. Seu bastão também passou a ser chamado de kerykeion, o caduceu, em datas tardias. As primeiras representações deste bastão o mostram como uma vara de ouro coroada por uma forma que se assemelhava à do número oito, embora às vezes com seu topo truncado e aberto. Mais tarde o bastão passou a ter duas serpentes entrelaçadas e às vezes era coroado com um par de asas e uma esfera, mas a forma antiga permaneceu em uso mesmo quando Hermes foi associado a Mercúrio pelos romanos.[7][101][102] Higino explicou a presença das serpentes dizendo que certa vez Hermes estava a viajar pela Arcádia quando viu duas serpentes entrelaçadas em luta. Colocou o caduceu entre elas e se separaram, e assim disse que seu bastão trazia a paz.[103] O caduceu, historicamente, não apareceu com Hermes, e é documentado entre os babilônios desde cerca de 3 500 a.C. As duas serpentes enroladas em torno de um bastão eram um símbolo do deus Ninguiszida, que servia como um mediador entre os homens e deusa-mãe Istar ou o supremo, Ninguirsu. Da Babilônia passou à Síria, cujo deus Simios tinha o caduceu como seu símbolo. Na própria Grécia outros deuses podiam portar um caduceu, mas ficou principalmente associado com Hermes. Tinha o poder de fazer as pessoas dormirem ou acordarem, e também fazia a paz entre litigantes, além de ser um sinal visível de sua autoridade, usado como um cetro. Era representado nas entradas das casas possivelmente como um amuleto de boa fortuna, ou como um símbolo purificador. O caduceu não deve ser confundido com o bastão de Asclépio, patrono da medicina e filho de Apolo, que ostenta apenas uma serpente. O bastão de Asclépio foi adotado pela maioria dos médicos ocidentais como um emblema de sua profissão, mas em várias organizações médicas dos Estados Unidos o caduceu assumiu o seu lugar desde o século XVIII, embora este uso esteja em declínio em favor do outro símbolo. Depois do Renascimento o caduceu apareceu também na heráldica em vários brasões, e presentemente é um símbolo do comércio.[7][104] No Brasil o caduceu é um dos símbolos das Ciências Contábeis.[105]
Suas sandálias, chamadas de pédila pelos gregos e talaria pelos romanos, no Hino eram feitas de ramas de mirtilo e tamareira, mas foram descritas como belas, douradas e imortais, feitas com uma arte sublime, capazes de o levarem pelos caminhos com a rapidez do vento. Originalmente não tinham asas, mas nas representações artísticas tardias elas aparecem. Em certas imagens as asas brotam diretamente dos tornozelos. Também pode levar uma bolsa ou um saco em suas mãos, e usar um manto ou capa, que tinha o poder de conferir a invisibilidade. Sua arma era uma espada de ouro, com a qual matou Argos; emprestou-a a Perseu para que matasse Echemon.[7][92]
- Autor desconhecido: Hermes ingênuo, século V a.C. Cópia romana. Museus Vaticanos.
- Hermanúbis, séculos II-III. Museus Vaticanos.
- Selo grego com a efígie do deus, 1876.
- Brasão da comuna francesa de Saint-Pantaléon, mostrando um caduceu.