No século XVIII, Johann Heinrich Lambert provou que o número π (pi) é irracional. Em outras palavras, ele não pode ser expresso como uma fração a/b, em que a é um número inteiro e b é um inteiro não nulo. No século XIX, Charles Hermite encontrou uma prova que não requer nenhum pré-requisito de conhecimento além de cálculo básico. Três simplificações da prova de Hermite são devidas a Maria Cartwright, Ivan Niven e Bourbaki. Outra prova, que é uma simplificação da prova de Lambert, é devida a Miklós Laczkovich.
Em 1761, Lambert provou que π é irracional mostrando primeiro que vale a seguinte expansão em frações continuas:
Em seguida, Lambert provou que, se x é diferente de zero e racional, então esta expressão deve ser irracional. Como tan(π/4)=1, segue-se que π/4 é irracional e, portanto, que π é irracional.[2] Uma simplificação da prova de Lambert é dada abaixo.
Esta prova utiliza a caracterização de π como o menor número positivo cuja metade é um zero da função cosseno e na verdade prova que π2 é irracional.[3][4] Como em muitas demonstrações de irracionalidade, a argumentação é feita por redução ao absurdo.
Considere as sequências (An)n≥0 e (Un)n≥0 de funções de R em R, assim definidas:
Pode-se provar por indução que
e que
e, por conseguinte, que
Logo,
o que é equivalente a
Segue disto por indução, e do fato de que A0(x)=sin(x) e que A1(x)=−xcos(x)+sin(x), que An(x) pode ser escrito como Pn(x2)sin(x)+xQn(x2)cos(x), em que Pn e Qn são funções polinomiais com coeficientes inteiros, sendo que o grau de Pn é menor ou igual a ⌊n/2⌋. Em particular, An(π/2)=Pn(π2/4).
Hermite também forneceu uma expressão fechada para a função An, a saber
Ele não justificou esta afirmação, mas ela pode ser comprovada facilmente. Primeiramente, esta afirmação é equivalente a
Procedendo por indução, consideren=0.
e, para o passo de indução, considere qualquer n∈Z+. Se
então, usando integração por partes e a regra de Leibniz, obtém-se
Se π2/4=p/q, com p e q em N, então, uma vez que os coeficientes de Pn são números inteiros e o seu grau é menor ou igual a ⌊n/2⌋, o número p⌊n/2⌋Pn(π2/4) é algum inteiro N. Em outras palavras,
Mas este número é claramente maior do que 0; portanto, N∈N. Por outro lado,
e assim, se n é suficientemente grande, N<1. Deste modo, obteve-se uma contradição.
Hermite não apresentou a sua prova como um fim em si, mas como uma reflexão posterior em sua busca por uma prova da transcendência de π. Ele discutiu as relações de recorrência para motivar e obter uma representação integral conveniente. Uma vez que esta representação integral é obtida, existem várias formas de apresentar uma prova sucinta e autocontida a partir do integral (como nas apresentações de Cartwright, Bourbaki ou Niven), que podiam ser vistas por Hermite (como ele fez em sua prova da transcendência de e[5]).
Além disso, a prova de Hermite é mais próxima da prova de Lambert do que parece. Na verdade, An(x) é o "resíduo" (ou "resto") da fração contínua de Lambert para tan(x).[6]
Considere as integrais
em que n é um número inteiro não negativo.
Duas integrações por partes resultam na relação de recorrência
Se
então isso se torna
Além disso, J0(x)=2sen(x) e J1(x)=-4xcos(x)+4sen(x). Assim, para todo n∈Z+,
em que Pn(x) e Qn(x) são polinômios de grau ≤2n, e com coeficientes inteiros (que dependem de n).
Tome x=π/2, e suponha, se possível, que π/2=a/b, sendo a e bnúmeros naturais (em outras palavras, suponha que π é racional). Então,
O lado direito é um número inteiro. Mas 0<In(π/2)<2 uma vez que o intervalo [−1,1] tem comprimento2 e a função que está sendo integrada assume apenas valores entre0 e1. Por outro lado,
Assim, para n suficientemente grande
isto é, seria possível encontrar um número inteiro entre 0 e 1. Essa é uma contradição que decorre da hipótese de que π é racional.
Esta prova é semelhante à de Hermite. De fato,
No entanto, é claramente mais simples. Consegue-se isso passando a definição indutiva das funções An e tomando como ponto de partida a sua expressão como uma integral.
Esta prova utiliza a caracterização de π como o menor raiz positivo da função seno.[8]
Suponha que π é racional, ou seja, que π = a/b para certos inteiros a e b ≠ 0 que, sem perda de generalidade, podem ser tomados positivos. Dado qualquer inteiro positivo n, define-se a função polinomial f de R em R por
e, para cada x∈R denote por
a soma alternada de f e com suas primeiras n derivadas de ordem par.
Afirmação 1:F(0) + F(π) é um número inteiro.
Prova:
Expandindo f como uma soma de monômios, o coeficiente de xk é um número da forma ck/n! em que ck é um número inteiro, que é0 se k < n. Portanto, f(k)(0) é0 quando k < n e é igual a (k!/n!)ck se n ≤ k ≤ 2n; em ambos os casos, f(k)(0) é um número inteiro e, portanto, F(0) é um número inteiro.
Por outro lado, f(π – x) = f(x) e portanto, (–1)kf(k)(π – x) = f(k)(x) para cada inteiro não negativok. Em particular, (–1)kf(k)(π) = f(k)(0). Portanto, f(k)(π) também é um número inteiro e assim F(π) é um inteiro (na verdade, é fácil ver que F(π)=F(0), mas isto não é relevante para a prova). Desde que F(0) e F(π) são números inteiros, a sua soma também é.
Afirmação 2:Prova: Como f(2n+2) é o polinômio nulo, tem-se
Asderivadas das funções seno e cosseno são dadas por sen'=cos e cos'=−sen. Portanto, a regra do produto implica
Pelo teorema fundamental do cálculo
Como sen 0 = sen π = 0 e cos 0 = –cos π = 1 (aqui é usada a caracterização de π mencionada acima, como um zero da função seno), resulta que a afirmação2 é verdadeira.
Conclusão: Como f(x) > 0 e sin x > 0 para 0 < x < π (porque π é a menor raiz positiva da função seno), as afirmações1 e 2 mostram que F(0) + F(π) é um inteiro positivo. Como 0 ≤ x(a – bx) ≤ πa e 0 ≤ sin x ≤ 1 para 0 ≤ x ≤ π, resulta da definição original def, que
que é menor do que 1 paran grande, de modo que F(0) + F(π) < 1 para estes n, pela afirmação2. Isso é impossível para o número inteiro positivoF(0) + F(π).
A prova acima é uma versão polida, que é mantida tão simples quanto possível em relação aos pré-requisitos, de uma análise da fórmula
que é obtida através de 2n + 2integrações por partes. A afirmação2 essencialmente estabelece esta fórmula, onde o uso de F esconde as repetidas integrações por partes. A última integral desaparece porque f(2n+2) é o polinômio nulo. A afirmação1 mostra que a soma restante é um número inteiro.
A prova de Niven está mais perto da de Cartwright (e, portanto, da de Hermite) do que parece à primeira vista.[6] Na verdade,
Portanto, a substituiçãoxz=y transforma esta integral em
Em particular,
Outra conexão entre as provas reside no fato de que Hermite já menciona[3] que se f é uma função polinomial e
então,
e a partir disso, segue-se que
Bourbaki descreve sua prova em linhas gerais em um exercício em seu tratado de Cálculo.[9] Para cada número natural b e cada número inteiro não negativo n, defina
Como Umn(b) é a integral de uma função definida em [0,π] que zera em 0 e em π e que é maior do que0 nos demais pontos, Uman(b)>0. Além disso, para cada número natural b, Uman(b)<1 para n suficientemente grande, porque
e portanto
Por outro lado, a integração por partes recursivamente permite a dedução de que, se a e b são números naturais tais que π=a/b e f é a função polinomial de [0,π] em R definida por
então:
Esta última integral é 0 pois f(2n+1) é a função nula (já que f é uma função polinomial de grau 2n). Como cada função f(k) (com 0 ≤ k ≤ 2n) assume valores inteiros em 0 e em π (ver afirmação 1 da prova de Niven) e como o mesmo acontece com as funções seno e cosseno, isto prova que An(b) é um inteiro. Como ele também é maior do que0, ele deve ser um número natural. Mas também foi mostrado que An(b)<1 se n é suficientemente grande, chegando deste modo a uma contradição.
Esta prova é bastante próxima a de Niven, sendo a principal diferença entre elas a forma como é demonstrado que os números An(b) são inteiros.
A prova de Miklós Laczkovich é uma simplificação da prova original de Lambert.[10] Ele considera as funções
Estas funções estão claramente definidas para todo x∈R. Além disso
Afirmação 1: Vale a seguinte relação de recorrência:
Prova: Isto pode ser provado comparando os coeficientes das potências de x.
Afirmação 2: Para cada x∈R,
Prova: De fato, a sequência x2n/n! é limitada (pois converge para 0) e se C é uma cota superior e se k>1, então
Afirmação 3: Se x≠0 e se x2 é racional, então
Prova: Caso contrário, existiria um número y≠0 e inteiros a e b tais que fk(x)=ay e fk+1(x)=by. Para ver o porquê, considere y=fk+1(x), a=0 e b=1 se fk(x)=0; caso contrário, escolha inteiros a e b tais que fk+1(x)/fk(x)=b/a e defina y=fk(x)/a=fk+1(x)/b. Em cada caso, y não pode ser 0, pois senão resultaria da afirmação 1 que cada fk+n(x) (n∈N) seria igual a0, o que contradiria a afirmação 2. Agora, tome um número natural c tal que todos os números bc/k, ck/x2 e c/x2 sejam inteiros e considere a sequência
Então
Por outro lado, resulta da afirmação 1 que
que é uma combinação linear de gn+1 e gn com coeficientes inteiros. Então, cada gn é um múltiplo inteiro de y. Além disso, resulta da afirmação 2 que cada gn é maior do que0 (e consequentemente que gn≥|y|) se n é grande o bastante e que a sequência de todas as gn's converge para 0. Mas uma sequência de números maiores ou iguais a |y| não pode convergir para 0.
Como f1/2(π/4)=cos(π/2)=0, resulta da afirmação 3 que π2/16 é irracional e que portanto π é irracional.
Por outro lado, como
outra consequência da afirmação 3 é que, se x∈Q\{0}, então tanx é irracional.
A prova de Laczkovich é, realmente sobre a função hipergeométrica. De fato, fk(x)=0F1(k;−x2) e Gauss encontrou uma expansão em frações contínuas da função hipergeométrica usando sua equação funcional.[11] Isto permitiu que Laczkovich encontrasse uma nova prova mais simples para o fato de que a função tangente tem a expansão em frações contínuas que Lambert havia descoberto.
O resultado de Laczkovich também pode ser expresso em funções de Bessel do primeiro tipo Jν(x). De fato, Γ(k)Jk−1(2x)= xk−1fk(x). Então o resultado de Laczkovich é equivalente a: Se x≠0 e se x2 é racional, então
Lindemann, Ferdinand von (2004) [1882], «Ueber die Zahl π», in: Berggren, Lennart; Borwein, Jonathan M.; Borwein, Peter B., Pi, a source book, ISBN0-387-20571-3 3rd ed. , New York: Springer-Verlag, pp.194–225
Lambert, Johann Heinrich (2004) [1768], «Mémoire sur quelques propriétés remarquables des quantités transcendantes circulaires et logarithmiques», in: Berggren, Lennart; Borwein, Jonathan M.; Borwein, Peter B., Pi, a source book, ISBN0-387-20571-3 3rd ed. , New York: Springer-Verlag, pp.129–140
Bourbaki, Nicolas (1949), Fonctions d'une variable réelle, chap. I–II–III, Actualités Scientifiques et Industrielles (em french), 1074, Hermann, pp.137–138 !CS1 manut: Língua não reconhecida (link)
Gauss, Carl Friedrich (1811–1813), «Disquisitiones generales circa seriem infinitam», Commentationes Societatis Regiae Scientiarum Gottingensis recentiores (em latin), 2 !CS1 manut: Língua não reconhecida (link)
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