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Ironia
figura retórica Da Wikipédia, a enciclopédia livre
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Ironia, em seu sentido mais amplo, é a justaposição entre aquilo que aparenta ser à primeira vista e aquilo que realmente é ou se espera que seja. Costuma figurar como um dispositivo retórico e técnica literária. Em alguns contextos filosóficos, porém, assume uma importância maior, caracterizando todo um modo de vida.


A ironia já foi definida de diversas maneiras, e não há consenso geral sobre a melhor forma de organizar seus vários tipos.
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Etimologia
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«Ironia» provém do grego eironeia (εἰρωνεία) e data do século V a.C. O termo foi cunhado em referência ao personagem‐tipo da Comédia Antiga (como a de Aristófanes) chamado eiron, que dissimula e aparenta menos inteligência que possui — triunfando, assim, sobre seu oposto, o alazon, fanfarrão vanglorioso.[1][2][3]
Embora inicialmente sinônima de mentira, nos diálogos de Platão eironeia passou a significar «uma simulação intencional que o ouvinte deve reconhecer».[4] Em termos simples, passou a abranger a definição geral de «expressar algo usando linguagem que normalmente significa o oposto, geralmente para efeito humorístico ou enfático».[5]
Até o Renascimento, a forma latina ironia era vista como parte da retórica, normalmente uma espécie de alegoria, segundo os moldes de Cícero e Quintiliano no início do século I d.C.[6] «Ironia» entrou no inglês do século XVI com significado semelhante ao do francês ironie, derivado do latim.[7]
Por volta do fim do século XVIII, «ironia» ganha outro sentido, atribuído a Friedrich Schlegel e a outros do primeiro Romantismo alemão. Eles propõem um conceito de ironia que não é mera «brincadeira artística», mas uma «forma consciente de criação literária», envolvendo a «alternância constante de afirmação e negação».[8] Deixa de ser apenas recurso retórico para tornar‑se uma postura metafísica diante do mundo.[9]
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O problema da definição
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É lugar‑comum iniciar um estudo sobre ironia reconhecendo que o termo simplesmente escapa a qualquer definição única.[10][11][12] O filósofo Richard J. Bernstein abre Ironic Life observando que um levantamento da literatura sobre ironia deixa ao leitor a impressão «dominante» de que os autores estão «falando de assuntos diferentes».[13] De fato, o linguista Geoffrey Nunberg nota uma tendência de o sarcasmo acabar assumindo o papel linguístico da ironia verbal em meio a toda essa confusão.[14]
No The King's English (1906), Henry Watson Fowler escreve: «qualquer definição de ironia — ainda que centenas possam ser dadas, e poucas sejam aceitas — deve incluir que o significado superficial e o significado oculto do que se diz não são os mesmos». Disso decorre o conceito de dupla audiência: «uma parte que, ouvindo, não entende; e outra parte que, quando se quer dizer mais do que parece, percebe tanto esse “mais” quanto a incompreensão dos de fora».[15]
Com base nessa premissa, o teórico Douglas C. Muecke aponta três características essenciais de toda ironia:
- A ironia depende de um fenômeno em dois níveis: «No nível inferior está a situação como aparece à vítima ou como é apresentada de forma enganosa pelo ironista». O nível superior é a situação tal como aparece ao leitor ou ao ironista.[16]
- O ironista explora a contradição ou incompatibilidade entre os dois níveis.
- A ironia joga com a inocência da vítima: «Ou a vítima ignora a possibilidade de haver um nível superior que invalide o seu, ou o ironista finge ignorá‑lo».[17]
Para Wayne Booth, esse duplo caráter torna a ironia um fenômeno retoricamente complexo: pode fortalecer laços sociais, mas também aprofundar divisões.[18]
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Tipos de ironia
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Perspectiva
Classificar a ironia em tipos distintos é quase tão polêmico quanto defini‑la. Obras de referência costumam listar pelo menos ironia verbal, ironia dramática, ironia cósmica e ironia romântica.[19][20][21][22] Os três últimos contrastam‑se com a ironia verbal como formas de ironia situacional, isto é, em que não há ironista expresso.[23]
Ironia verbal é «uma declaração em que o significado pretendido difere acentuadamente do significado ostensivo».[24] É produzida intencionalmente pelo falante. Samuel Johnson exemplifica com «Bolingbroke era um homem santo» (quando não era).[25][26] Hipérbole, litote e ingenuidade fingida também podem caber aqui.[27]
Ironia dramática dá ao público informações que as personagens ignoram, permitindo reconhecer suas ações como contraproducentes ao que a situação exige.[28] Distingue‑se instalação, exploração e resolução, criando conflito dramático quando uma personagem se apoia em algo cujo contrário o público sabe ser verdadeiro.[29] Ironia trágica é caso particular.
Ironia cósmica (ou «do destino») mostra agentes frustrados por forças além do controle humano, associada às obras de Thomas Hardy.[30][31]
Ironia romântica aproxima‑se da cósmica, mas é o autor quem assume o papel da força superior — como o narrador de A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy.[32]
Outra tipologia
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Perspectiva
Partindo da estrutura em dois níveis da ironia, o autodenominado «ironólogo» D. C. Muecke propõe uma maneira complementar de classificar fenômenos irônicos. Ele distingue, em cruzamento, três gradações e quatro modos de enunciação irônica.
Três gradações de ironia
As gradações se distinguem «pelo grau em que o verdadeiro sentido é ocultado». Muecke as chama de aberta, velada e privada:[33]
- Ironia aberta – o sentido real é evidente para todas as partes; o efeito provém da «patente» contradição. Exemplos sarcásticos classificados como irônicos costumam ser deste tipo. Perde força com a repetição.[34]
- Ironia velada – «destinada a não ser vista, mas detectada». O ironista finge ignorância, correndo o risco de que a ironia passe despercebida; exige contexto retórico mais amplo.[35]
- Ironia privada – não se pretende que ninguém a perceba; serve apenas ao deleite interno do ironista. Mr. Bennet, em Orgulho e Preconceito, deleita‑se ao ver sua esposa levar a sério observações que ele próprio julga irônicas.[36]
Quatro modos de ironia
Os modos se distinguem «pelo tipo de relação entre o ironista e a ironia». São eles: ironia impessoal, ironia autodepreciativa, ironia ingênua e ironia dramatizada:[37]
- Ironia impessoal – marcada pelo tom deadpan ou «cara de poker» do ironista; abrange humor seco, fingida concordância, falsa ignorância, atenuação, exagero etc.[38]
- Ironia autodepreciativa – introduz a personalidade do ironista numa performance transparente, visando dirigir a ironia a outro alvo. Ex.: Sócrates lamenta a «má memória» para criticar o prolixo Protágoras.[39]
- Ironia ingênua – baseia‑se numa ignorância assumida e convincente; paradigma: A Roupa Nova do Imperador ou o Bobo em Rei Lear.[40]
- Ironia dramatizada – simples apresentação de situações irônicas para deleite do público, sem que o ironista apareça; comum nos romances de Gustave Flaubert.[41]
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A dimensão retórica
Tratar a ironia como retórica é considerá‑la ato comunicativo.[42] Em A Rhetoric of Irony, Wayne C. Booth pergunta «como conseguimos partilhar ironias e por que tantas vezes falhamos».[43]
Como a ironia expressa algo contrário ao literal, requer do público certa «tradução».[44] Booth aponta três acordos básicos para que essa tradução funcione: domínio comum da língua, valores culturais partilhados e (nas artes) experiência de gênero.[45]
O não reconhecimento gera embaraço maior que o simples erro factual, pois a ironia envolve identidades e crenças profundas.[46] Ao mesmo tempo, fortalece a comunidade dos que a compreendem.[47]
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Ironia geral, ou «ironia como modo de vida»
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Perspectiva
Em contextos filosóficos, «ironia» pode designar um modo de vida ou verdade universal sobre a condição humana. Booth nota que o termo tende a ligar‑se a «um tipo de caráter — os astutos eirons de Aristófanes, o desconcertante Sócrates de Platão — e não a um só recurso».[48] Aqui, o que a ironia cósmica expressa retoricamente ganha peso existencial ou metafísico.[49][50]
Friedrich Schlegel
À frente do Frühromantik (1797–1801), Schlegel propôs o «imperativo romântico»: dissolver a barreira entre arte e vida por meio de uma «nova mitologia» moderna.[51] Contra o fracasso fundacionalista (ex. Johann Gottlieb Fichte),[52] a ironia seria o reconhecimento de que, embora a verdade absoluta seja inalcançável, «devemos buscá‑la para nos aproximarmos dela» — à maneira de Sócrates.[53][54] Ela capta a situação humana: sempre rumo ao infinito, mas sem jamais possuí‑lo por completo.[55]
Interpretação de Hegel
G. W. F. Hegel opôs‑se à ironia romântica, vendo‑a como trivial e antagônica ao que é substancial, em contraste com a ironia socrática que antecipa seu método dialético.[56] Para Rüdiger Bubner, Hegel «compreendeu mal» Schlegel ao ignorar sua abertura a uma filosofia sistemática.[57]
Søren Kierkegaard
Tese VIII de O Conceito de Ironia define a ironia como «negatividade infinita e absoluta» — crítica total à realidade sem oferecer alternativa positiva.[58][59] Para Kierkegaard, Sócrates personifica tal negatividade. Seus pseudônimos literários exploram o impasse existencial dessa autoconsciência poética.[60] A ironia é ponto de partida: destrói ilusões, abrindo espaço para um compromisso ético ou religioso genuíno.[61]
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Sobreposição com a ironia retórica
Referindo‑se a obras autoconscientes como Dom Quixote e A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy, Muecke destaca Marat/Sade' de Peter Weiss: peça dentro da peça, encenada por internos de um asilo, onde não se sabe se os discursos se dirigem às personagens ou ao público.[62]
Anne K. Mellor, em English Romantic Irony, vê na ironia romântica «tanto uma concepção filosófica do universo quanto um programa artístico»; caracteriza o mundo como fundamentalmente caótico e sem finalidade ordenada.[63]
A metaficção — ficção que revela sua própria artificialidade — é frequentemente classificada como forma de ironia romântica, fenômeno que ganha fôlego após a Segunda Guerra Mundial.[64] Exemplos célebres incluem A Mulher do Tenente Francês, de John Fowles, cujo capítulo 13 rompe deliberadamente a «suspensão da descrença».[65]
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Fenômenos relacionados
Sarcasmo
Há confusão entre ironia verbal e sarcasmo. Diversas fontes os distinguem: a ironia exprime o oposto do sentido literal; o sarcasmo é crítica mordaz muitas vezes irônica, mas nem sempre. Estudos psicolinguísticos indicam que a ridicularização é componente central do sarcasmo, mas não da ironia verbal em geral.[66][67] Apesar disso, leigos tendem a rotular a maioria das ironias como «sarcasmo».[68]
Uso incorreto do termo
Falantes de inglês frequentemente reclamam do uso impreciso de irony/ironic para designar meras coincidências.[69] Desde o século XVII, contudo, já se emprega o termo em sentido amplo para «contradição entre expectativa e circunstância».[70]
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Ver também
- Accismus
- Apófasis
- Auto-antônimo
- Duplo critério
- Hipocrisia
- Ironia do destino
- Pontuação de ironia
- Meta‑comunicação
- Oxímoro
- Paradoxo
- Pós‑ironia
Referências
- (Abrams & Harpham 2008, p. 165)
- (Preminger & Brogan 1993, p. 633)
- (Colebrook 2004, p. 6)
- (OED staff 2016, sense 1.a)
- (Colebrook 2004, p. 7)
- (OED staff 2016, etymology)
- (Preminger & Brogan 1993, p. 634)
- (Cuddon 2013, p. 372)
- (Muecke 2023, pp. 14–15)
- (Booth 1974, pp. ix–x)
- (Colebrook 2004, p. 1)
- (Bernstein 2016, p. 1)
- (Kreuz 2020, cap. 9, § “Skunked Terms?”)
- (Muecke 2023, p. 19)
- (Muecke 2023, p. 20)
- (Booth 1974, p. ix)
- (Preminger & Brogan 1993, pp. 633–35)
- (Abrams & Harpham 2008, pp. 165‑68)
- (Hirsch 2014, pp. 315–17)
- (Cuddon 2013, pp. 371–73)
- (Muecke 2023, pp. 42, 99)
- (Abrams & Harpham 2008, p. 165)
- (Hirsch 2014, p. 315)
- (Hirsch 2014, pp. 315–16)
- (Abrams & Harpham 2008, p. 167)
- (Stanton 1956, pp. 420–26)
- (Abrams & Harpham 2008, p. 167)
- (Hirsch 2014, p. 316)
- (Abrams & Harpham 2008, p. 168)
- (Muecke 2023, pp. 52–53)
- (Muecke 2023, pp. 52–53)
- (Muecke 2023, pp. 56–59)
- (Muecke 2023, pp. 59–60)
- (Muecke 2023, pp. 64–92)
- (Muecke 2023, pp. 64‑86)
- (Muecke 2023, pp. 87‑88)
- (Muecke 2023, p. 91)
- (Muecke 2023, pp. 91‑92)
- (Booth 1974, p. 7)
- (Booth 1974, p. ix)
- (Booth 1974, p. 33)
- (Booth 1974, p. 100)
- (Booth 1974, pp. xi, 44)
- (Booth 1974, p. 28)
- (Booth 1974, pp. 138‑39)
- (Muecke 2023, p. 120)
- (Bernstein 2016, pp. 1‑13)
- (Beiser 2006, pp. 6‑19)
- (Beiser 2006, pp. 107‑130)
- (Beiser 2006, pp. 128‑29)
- (Bubner 2003, pp. 207‑08)
- (Frank 2004, p. 218)
- (Inwood 1992, pp. 146‑50)
- (Bubner 2003, p. 213)
- (Kierkegaard 1989, p. 6)
- (Bernstein 2016, p. 89)
- (Söderquist 2013, pp. 252‑60)
- (Bernstein 2016, pp. 94‑99)
- (Muecke 2023, pp. 178‑80)
- (Mellor 1980, pp. 4, 187)
- (Giesing 2004, p. 6)
- (Nicol 2009, pp. 108‑109)
- (Conley 2011, p. 81)
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Bibliografia
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