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Calundu
Religião afro-brasileira Da Wikipédia, a enciclopédia livre
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Calundu foi um complexo de cerimônias religiosas e terapêuticas de origem centro-africana, amplamente praticado na América Portuguesa entre os séculos XVII e XVIII, considerada uma das religiões afro-brasileiras. Considerados uma "ciência do concreto", os calundus codificavam, na prática, um complexo entendimento centro-africano do cativeiro, expressando as ideias de uma parcela dos escravizados sobre a escravidão. Essas práticas eram vistas como um sistema de pensamento centro-africano que apresentava um discurso crítico em relação à escravidão, concebendo-a como doença e engendrando novas formas de consciência utópica para os africanos na América.[1]
O Calundu se caracterizava pelo uso de tambores rituais e pela incorporação espiritual. O Calundu era praticado principalmente por escravizados e pessoas livres de ascendência africana nas comunidades mineradoras dos séculos XVII e XVIII da região de Minas Gerais.
Os rituais do Calundu não eram exclusivos de afrodescendentes: pessoas brancas também buscavam cura e aconselhamento espiritual por meio dessas práticas. Acredita-se que os toques e ritmos dos Calundus tenham sobrevivido em diferentes religiões sincréticas do Brasil, como a Umbanda e o Candomblé, além de influenciar seus estilos musicais baseados na percussão.[2]
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Contexto histórico
Os calundus surgiram no contexto da colonização portuguesa e da intensa presença africana nas áreas de mineração de ouro e diamante em Minas Gerais, especialmente nas vilas de Ouro Preto, Mariana, Sabará e São João del-Rei. Nessas regiões, formaram-se importantes comunidades de origem banto, responsáveis por preservar e recriar práticas religiosas e terapêuticas africanas em meio à repressão colonial e à influência do catolicismo.
Os registros históricos sobre o Calundu aparecem principalmente em documentos inquisitoriais e em relatos de autoridades coloniais, que viam essas práticas como formas de "superstição" ou "feitiçaria". Apesar disso, o Calundu constituiu um importante espaço de resistência cultural e espiritual dos africanos e afrodescendentes no Brasil, articulando elementos de cura, adivinhação, música e religiosidade.
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Etimologia e terminologia
O termo Calundu e suas variações — como lundus, ulundus, colundus, calandus, calanduz e quilundos — têm origem centro-africana, derivando do vocábulo quimbundo quilundo.[3] Na raiz etimológica, quilundo designava um tipo de espírito que se introduzia no corpo dos vivos por meio da possessão espiritual, e não um ritual em si. O missionário capuchinho Giovanni Cavazzi de Montecúccolo registrou que o termo era usado especificamente entre os jagas, um grupo étnico centro-africano.
As variações na terminologia podem ser explicadas pela morfologia das línguas bantas, como o quimbundo, nas quais prefixos e flexões gramaticais são aplicados ao radical da palavra. Além de designar a cerimônia religiosa ou o espírito, Calundu também podia se referir à doença que acometia o enfermo que procurava a cerimônia terapêutica. Em Angola, outros termos relacionados a rituais semelhantes incluíam saquelamentos, zumbi e juramentos do bulungo.
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Características e rituais
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Perspectiva
As cerimônias de Calundu possuíam caráter predominantemente terapêutico e divinatório, voltadas à adivinhação e à cura.[1] O oficiante — denominado calunduzeiro ou calunduzeira — era o sacerdote responsável por curar indivíduos doentes mediante a consulta a espíritos. Dentre os nomes mais conhecidos estão Luzia Pinta, Branca, Félix, Pai Garcia e Pai Caetano.
Os Calundus eram acompanhados por música de percussão, cantos e danças. Instrumentos como atabaques (ou tabaques) e canzás eram frequentemente utilizados para conduzir o ritmo ritual. O transe espiritual e a possessão por entidades eram elementos centrais: os calunduzeiros entravam em estado alterado de consciência — descritos como estando “fora de si”, “como mortos” ou tomados por “ventos de adivinhar” — durante o qual lhes eram reveladas a origem da doença e as formas de cura. A calunduzeira Luzia Pinta, por exemplo, foi descrita nos registros coloniais como “agoniada”, “horrorosa” e “enfurecida” durante o transe.
Os rituais incluíam diversos elementos simbólicos e materiais.[1] Eram comuns as oferendas e sacrifícios de animais, como galinhas ou vacas, cujo sangue e carne eram oferecidos aos ancestrais. Entre as substâncias rituais, destacava-se o uso do barro branco (mpemba ou pemba), empregado para facilitar a comunicação com o mundo dos mortos. Também eram utilizados sangue, ervas e raízes moídas para unções e preparações curativas.
Os objetos rituais variavam conforme o contexto, incluindo alfanges, machadinhos, grinaldas de flores, penachos, argolas e correntes de ferro. Eram comuns embrulhos com ingredientes presos aos braços dos clientes, miniaturas de navios (escalers) usadas para esfregar o corpo dos enfermos, bonecas de três pernas, varas com ganchos de ferro, laranjas e cabacinhas que serviam como instrumentos de adivinhação.
A adivinhação era realizada pela interpretação de sinais e mensagens dos espíritos. José da Silva Barbosa, por exemplo, utilizava um escaler para produzir visões; Ivo Lopes e Maria Cardoso adivinhavam a origem das doenças riscando cruzes no chão com barro branco e vermelho e lançando uma cabacinha, interpretando os resultados como oráculos.
A concepção de cura estava intimamente ligada à “doença do Calundu”, entendida como um distúrbio espiritual causado pela ação de um espírito. A intervenção dessa entidade era considerada indispensável para o restabelecimento do doente. Em muitos casos, acreditava-se que a enfermidade resultava da interrupção do culto aos antepassados e que os espíritos causadores da doença eram as almas de parentes falecidos.
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Cosmologia
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Perspectiva
A cosmologia dos Calundus estava profundamente enraizada nas tradições centro-africanas e na noção de ancestralidade.[1] Esses rituais partiam da concepção de que a doença espiritual era consequência da quebra do vínculo com os ancestrais — uma falta cometida pelo descendente que deixara de honrá-los por meio de oferendas. A cura consistia, portanto, na retomada desse culto e na reparação do laço ancestral.
A visão cosmológica centro-africana concebia o universo dividido entre o mundo visível, habitado pelos vivos, e o mundo invisível, onde residiam os mortos e os espíritos. Esses dois domínios eram separados por uma fronteira simbólica representada por elementos como a água, os rios e a cor vermelha. A travessia dessa fronteira era essencial para o exercício do poder ritual e para a comunicação com o além.
Em alguns contextos, observava-se uma inversão da ancestralidade: os espíritos causadores das doenças não eram os antepassados, mas os filhos falecidos dos aflitos. Casos como os de Branca, na Bahia, e de João e Pai Garcia, em Minas Gerais, exemplificam essa inversão, em que os “filhos” apareciam como sacerdotes — conhecidos como Ganga — em sua terra de origem.
A experiência religiosa do Calundu codificava a própria condição da escravidão como forma de doença espiritual. Nesse sentido, o Calundu era simultaneamente doença, cura e vocação sacerdotal: o indivíduo acometido pela “doença do Calundu” era curado e, a partir dessa experiência, tornava-se ele mesmo um calunduzeiro, apto a invocar o poder dos ancestrais para curar outros.
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Contexto social e clientes
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Os calundus eram praticados por africanos na América portuguesa e possuíam uma clientela socialmente diversificada.[1] Eram conduzidos principalmente por africanos, especialmente os de origem “angola” e “congo”, além de afrodescendentes como crioulos e mulatos. Contudo, há registros que indicam uma disseminação mais ampla entre diferentes grupos africanos, como o caso do cabo-verdiano Félix, ativo em Minas Gerais no século XVIII.
A clientela dos calunduzeiros não se restringia aos escravizados ou libertos: incluía também pessoas brancas, em alguns casos pertencentes às elites locais. A crença de que certas doenças eram provocadas por feitiços era generalizada, mesmo entre indivíduos com formação médica, o que levava muitos a recorrer aos rituais de calundu em busca de cura espiritual. As práticas não constituíam fenômenos isolados. Calunduzeiros como Luzia Pinta contavam com assistentes — muitas vezes seus próprios escravizados — que tocavam instrumentos e auxiliavam nas cerimônias. As casas de calundu podiam funcionar como verdadeiros centros iniciáticos, reunindo devotos e fiéis.
Para muitos praticantes, o exercício do calundu também podia representar um caminho para a liberdade. Alguns conquistavam a alforria por gratidão de clientes ou pela acumulação de recursos obtidos com as curas. Quando os calunduzeiros mantinham escravizados que os auxiliavam nos rituais, essa relação assumia caráter ambíguo: de um lado, o cativeiro; de outro, a iniciação espiritual e a promessa simbólica de libertação.
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Calundus e catolicismo
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Perspectiva
As relações entre os Calundus e o catolicismo eram complexas, marcadas por intercâmbios culturais, sincretismo e estratégias de mediação simbólica.[1] Em regiões como Angola e o Reino do Congo, o catolicismo já possuía grande presença desde o século XVI, o que favoreceu a formação de um “catolicismo centro-africano”. Nesse contexto, calunduzeiros como Luzia Pinta desenvolveram estratégias de tradução simbólica, aproximando os significados da tradição cristã das cosmologias africanas. Elementos como rezas, cruzes e invocações a Deus e Nossa Senhora eram incorporados aos rituais, criando homologias entre santos e entidades ancestrais.
O clero de Luanda também demonstrava familiaridade com as culturas locais, traduzindo o catolicismo para línguas como o quimbundo. Padres e catequistas africanos, conhecidos como nganga (sacerdote em quicongo/quimbundo), atuavam como mediadores culturais entre os dois universos religiosos. Em Minas Gerais, calunduzeiros como Antônio Angola realizavam cerimônias semelhantes a procissões católicas, com trajes rituais elaborados — jalecos vermelhos, penas e peles de onça — que evocavam, ao mesmo tempo, as vestes eclesiásticas e os símbolos de poder espiritual centro-africanos.
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Calundu como resistência e utopia
Os Calundus constituíam uma autêntica “história intelectual da escravidão” e representavam uma forma de resistência simbólica ao cativeiro.[1] O sistema de pensamento associado aos Calundus expressava uma crítica implícita à escravidão, frequentemente concebida como uma espécie de doença espiritual. A cura, nesse contexto, implicava o restabelecimento de vínculos rompidos pelo tráfico e pela diáspora, promovendo novas formas de consciência utópica e de solidariedade coletiva.
A chamada “doença do Calundu” era entendida como resultado da interrupção do culto aos ancestrais. A cura dependia da recomposição dos laços entre descendência e ascendência, reconstruindo comunidades ampliadas de parentesco e resistência. Essa utopia da regeneração articulava passado (ancestralidade), presente (escravidão) e futuro (libertação), configurando uma consciência histórica sofisticada. As invocações a figuras históricas africanas, como Dom Felipe, rei do Congo, e Nzinga Mbandi, rainha de Matamba, revelavam ainda uma dimensão política, simbolizando a luta por poder e dignidade entre os africanos escravizados.
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Repressão e demonização
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Os Calundus foram alvo de repressão sistemática por parte de instituições coloniais e eclesiásticas, empenhadas em preservar tanto a ideologia da escravidão quanto a ortodoxia católica.[1] Embora fossem vistos como um desvio religioso, o Tribunal do Santo Ofício não os priorizava tanto quanto a perseguição a cristãos-novos. Ainda assim, casos como o da calunduzeira Luzia Pinta mostram a existência de longos processos inquisitoriais e condenações exemplares. Os bispados locais, por sua vez, agiam de forma mais direta, frequentemente promovendo prisões e punições.
As autoridades civis — capitães de ordenanças e governadores — também reprimiam os calunduzeiros, temendo a disseminação das práticas entre a população escravizada. Essa repressão era acompanhada por uma demonização linguística: os Calundus eram descritos como “feitiçarias”, “operações diabólicas” ou “pactos com o Demônio”. O moralista Nuno Marques Pereira chegou a propor uma etimologia inventada, “Calo duo” (“calam-se os dois”, referindo-se ao diabo e ao praticante), como forma de reforçar a condenação moral. As penas aplicadas variavam entre prisões, açoites públicos, uso de hábito penitencial, torturas — como ocorreu com Luzia Pinta[4] — e degredo para locais distantes, como o Algarve ou Castro Marim. O exílio forçado levava à dispersão dos fiéis e à dificuldade de continuidade dos cultos.
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Principais calunduzeiros e casos históricos
Entre os calunduzeiros mais conhecidos, destaca-se Luzia Pinta (Sabará, Minas Gerais, séc. XVIII), natural de Luanda, Angola, cujo processo inquisitorial constitui uma das principais fontes sobre o tema.[4] Também são mencionados Catarina (Rio Real da Praia, Bahia, 1694), que curava “ulundus” causados por espíritos de parentes falecidos em Angola; Branca (Rio Real da Praia, séc. XVII–XVIII), que invocava espíritos de seus filhos mortos; e Félix (Mariana, Minas Gerais, 1722), cabo-verdiano liberto que tratava “picadas” atribuídas às “almas da costa”.
Outros nomes incluem Pai Caetano (Vila Rica/Ouro Preto, séc. XVIII), que conquistou a alforria por meio de suas curas, utilizando ervas, raízes, tesouras, cruzes e invocações a Deus e Nossa Senhora; Pai Garcia (Brumado, Minas Gerais, 1755), alforriado de Benguela, conhecido por adivinhar e curar com a ajuda dos “filhos” ou “ventos” — espíritos de mortos em sua terra natal; e Francisco Dembo (Bahia, séc. XVII), um dos primeiros calunduzeiros documentados, que realizava cerimônias com tambores em casas escuras, de onde se ouviam vozes vindas do teto ensinando orações católicas.
Influências e legado
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O Calundu exerceu profunda influência sobre a formação das religiões afro-brasileiras, especialmente a Umbanda e o Candomblé. Elementos centrais dessas tradições — como o uso ritual do tambor, a incorporação de entidades, as práticas de cura espiritual e o diálogo simbólico com o catolicismo popular — têm origem nas experiências religiosas desenvolvidas por africanos e seus descendentes na América portuguesa. [1]
Em diversas comunidades coloniais, rituais semelhantes ao Calundu foram reinterpretados sob formas de devoção católica, como as irmandades de negros e as festas dedicadas a santos como Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Essa apropriação simbólica permitiu que tradições africanas sobrevivessem sob aparências católicas, estabelecendo as bases do sincretismo religioso brasileiro.
Apesar da repressão exercida por autoridades civis e eclesiásticas, os Calundus demonstraram grande capacidade de adaptação e transformação. Sua estrutura flexível, de transmissão oral e não padronizada, favorecia a criatividade individual dos calunduzeiros, impedindo a cristalização de um modelo único de culto. Essa plasticidade ritual possibilitou que muitos de seus elementos fossem incorporados a outras práticas religiosas afro-brasileiras.
Estudiosos reconhecem que os Calundus contribuíram significativamente para a formação de devoções posteriores como o Candomblé e a Umbanda, especialmente pela centralidade da ancestralidade, pela ideia de cura mediada por espíritos e pela incorporação de elementos do catolicismo popular. No final do século XIX e início do século XX, cerimônias mágicas de origem africana praticadas no Rio de Janeiro e em São Paulo passaram a ser genericamente chamadas de “macumba”, mantendo traços de continuidade com os antigos Calundus — entre eles, a crença na mediação espiritual e a territorialidade difusa dos curandeiros urbanos.
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Referências
- Marcussi, Alexandre Almeida (7 de agosto de 2015). «Cativeiro e cura: experiências religiosas da escravidão atlântica nos calundus de Luzia Pinta, séculos XVII-XVIII». São Paulo. doi:10.11606/t.8.2015.tde-11112015-134749. Consultado em 26 de agosto de 2025
- Grasse, Jonathon (2017). «Calundu's Winds of Divination: Music and Black Religiosity in Eighteenth and Nineteenth-Century Minas Gerais, Brazil». Yale Journal of Music and Religion. 3 (2). doi:10.17132/2377-231X.1080
- Marcussi, Alexandre A. (28 de setembro de 2018). «Utopias centro-africanas: ressignificações da ancestralidade nos calundus da América portuguesa nos séculos XVII e XVIII». www.scielo.br. doi:10.1590/1806-93472018v38n79-02. Consultado em 26 de agosto de 2025
- Daibert, Robert (abril de 2015). «A religião dos bantos: novas leituras sobre o calundu no Brasil colonial». www.scielo.br. Consultado em 26 de agosto de 2025
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Ver também
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